domingo, 5 de maio de 2024

Rui Diniz - "Ossuário (ou: A Vida de James Whistler)"


Rui Diniz
"Ossuário (ou: A Vida de James Whistler)"
Páginas: 69
& etc.

Rui Diniz pertence a essa conhecida Geração de 70, que nos ofereceu poetas como Nuno Júdice, Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães, entre outros e em 1977, a editora & etc de Vitor Silva Tavares, publicou o seu livro de poemas intitulado “Ossuário (ou: A Vida de James Whistler)”, que se revelou ser um dos mais belos livros de poesia publicados no século xx, que se encontra mais que esgotado, embora seja possível encontrá-lo para leitura tanto na Casa Fernando Pessoa como na Biblioteca Nacional, ambas em Lisboa.

Na época da sua publicação o livro de Rui Diniz foi objecto de uma Sessão de Leitura no Teatro da Cornucópia, na Sala Manuela Porto, recorde-se que na introdução de “Ossuário (“ou: A Vida de James Whistler)”, o poeta Nuno Júdice refere que “escritos na sua maior parte, senão todos, em Portugal, estes poemas falam do exílio simultaneamente como prova e exorcismo”. Convém referir que Rui Diniz, desde a publicação deste seu livro, reside nos Estados Unidos da América, na pequena cidade de Eaton, Ohio e só regressou a Portugal a convite da Casa Fernando Pessoa para um encontro de poetas portugueses a viverem fora do país, realizado em 1999, sobre o título “Encontro de Poetas da Diáspora Portuguesa”.

Recorde-se que Rui Diniz e Nuno Júdice são amigos de longa data, tendo até Rui Diniz assinado a introdução do primeiro livro de poemas de Nuno Júdice, intitulado “Noção de Poema” (1972). Embora nunca mais tenha surgido no nosso país outro livro de Rui Diniz, ele continua a escrever, como refere um artigo publicado na revista da Casa Fernando Pessoa, enviando a sua obra para o amigo Nuno Júdice. Aqui vos deixo um dos poemas incluídos em “Ossuário (ou: A Vida de James Whistler)”, uma das mais belas obras poéticas da segunda metade século xx.

Rui Luís Lima

James McNeill Whistler
(1834 - 1904)

Os Anos de Transição – Uma Canção de Exílio

Em Paris vi as raparigas escuras, por entre
a neve, respirando a solidão,
nas esquinas ásperas das tardes, descendo
nos passeios, procurando talvez os amigos
desaparecidos. Estava sentado nos cafés, a
escrever um romance sobre um grupo de pessoas,
muito jovens, que só se reunia nos cafés para
estudar e vadiava e bebia, a maior parte do tempo,
e também às vezes alguém se apaixonava
por alguém de uma maneira terrível e se
preocupava durante dias e às vezes meses seguidos
com isso. Eu próprio, de vez em quando,
parava de escrever e bebia um bocado
de pernod que encomendara.
De certo modo, as minhas recordações eram assim,
com pessoas a amarem-se secretamente, nos cafés,
enquanto conversavam sobre a opressão e os meios
de revolucionar os dias e as tardes, rindo nervosa-
mente, bebendo bagaços ou mesmo «moscas».
E as raparigas que entravam nos cafés e se sentavam
para tomar cafés e começavam a ler um livro
tirando os óculos escuros, eram as mesmas que
eu conhecera e talvez amara em Lisboa, os mesmos
rostos tristes, quase sem palavras, onde uma
alucinação milenária brilhava, em certos instantes, tão
terrivelmente.
Em Paris vi o inverno dilatar-me roxas olheiras
e aumentar-me a fome e não fui capaz de
escrever o romance porque o meu vocabulário
sempre tinha sido muito restrito e afinal eu
nunca soubera escrever na minha vida.
Uma tarde de Dezembro, no café de Versailles,
tomei um whisky com soda e conversei com
o criado sobre o vício em que todos os exilados
como eu ali se afundavam, e vi-o concordar
e várias vezes sorrir-me com uma quase piedade,
e nessa altura paguei, levantei-me, e pensei pelo
caminho muito seriamente se voltaria a
frequentar aquele café.

Rui Diniz
in “Ossuário (ou: A Vida de James Whistler)”
Edições & etc,
1977

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